Diário #10: A acção inconsequente
[ou A Física explica muita coisa]
Dia 1
Gondomar - Monasterio
Dia 2
Monasterio - Algeciras
Dia 3
Algeciras - El Aouamra
Dia 4
El Aouamra - Marrakech
Dia 5
Marrakech - Tan-tan Plage
Dia 6
Tan-tan Plage - Marsa
Dia 7
Marsa - Dakhla
Dia 8
Dakhla - Birgandouz
Dia 9
Birgandouz - Nouakchott
Dia 10
Nouakchott - Saint Louis
Dia 11
Saint Louis - Kaolack
Dia 12
Kaolack - Zinguichor
Dia 13
Zinguichor - Catió

Ao sairmos de Nouakchott não conseguia encontrar o livrete do carro. Depois de procurar em todos os lugares onde este deveria estar, o livrete continuava desaparecido. Quando não se sabe onde está algo, começamos a procurar em sítios onde sabemos que não está. É a acção inconsequente.

Na física, a fórmula para calcular o trabalho (W) é igual à força (F) a multiplicar pelo deslocamento (d): W = F.d

Por vezes, quando não sabemos muito bem o que estamos a fazer, tentamos resolver o problema exercendo muita força, por vezes em desespero. O problema é que esta força habitualmente não produz qualquer deslocamento, e consequentemente não produz trabalho. Apenas produz deformação interna. Todas as nossas acções devem ser pensadas, embora não sobrepensadas, mas é importante não esquecer a eficácia. Especialmente no altruísmo. É ainda importante relembrar que toda a acção tem sempre uma reação oposta e de igual intensidade, mas devemos olhar para além do que produz em nós. Se a nossa acção tiver apenas alterações em nós, podemos estar a correr o risco de esta ser uma acção inconsequente. Ser eficiente não quer dizer fazer tudo bem. Nada de verdadeiramente importante se faz sem erros e sem, durante o processo, alterar o rumo das nossas acções. Não existe mudança de direccção sem aceleração. No entanto, não podemos viver obcecados pela maximização da utilidade das nossas acções.

Há momentos na vida em que somos considerados um papel, uma classificação ou um livrete. A perda de um destes objectos ou do seu valor ilude-nos com a perda da nossa identidade. Felizmente, o livrete estava no novo porta-documentos que nos tinham dado para guardar o seguro extra que tivemos de fazer em Dakhla. Com o livrete, voltei a sentir-me um pouco mais completo.

Em Nouakchott temos visto várias pessoas com bicicletas adaptadas a servirem de cadeira de rodas.

A Mauritânia aperta-nos.

A Mauritânia troca-nos.

Passamos a ser menos.

O meu pé direito troca-se com o esquerdo, mas o esquerdo recusa-se em mudar.

A minha inspiração pára. Passamos apenas a expirar. Rapidamente ficamos sem ar.

Cada cruzamento é um pedido. Um pedido para, mesmo quebrados, sermos.

Na Mauritânia procura a sombra apenas quem ainda tem energia para tal, senão aceita-se o sol que queima.

Apetece desistir.

É importante saber renascer.

Renascer todos os dias. Por vezes, mais do que uma vez por dia.

Numa das paragens, umas crianças pediram-nos algo para comer. Partilhamos com eles um pacote de bolachas, mas a criança que apanhou o pacote fugiu de todas as outras. Na Guiné-Bissau, já vi um grupo de crianças a partilharem um chupa. A partilha talvez não seja apenas uma acção das pessoas, mas dos contextos.

O final do nosso caminho na Mauritânia fez-se por um Parque Natural com uma paisagem muito bonita, cheia de pássaros e frequentemente acompanhados por javalis. Assim que passamos o parque apanhamos, de longe, a pior estrada até ao momento.

Vivemos demasiado tempo sofrendo em antecipação do amanhã e com isso deixamos de viver o presente. A Mauritânia não foi nada dura connosco. A Mauritânia é dura, mas não podemos dizer que nos tenha tratado mal.

Chegamos a Saint-Louis. Saint-Louis, é outro mundo.

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