Diário #2: Da invisibilidade à recordação dele
[ou A ilusão da importância]

Conheci a S. numa sexta-feira de manhã. Acompanhou-me numa visita à Casa do Pastor. Nessa casa vivem 28 meninas que fugiram ao casamento arranjado. A S., na sua fuga, teve que dormir 2 noites no mato escondida no cimo das árvores.

Estive à conversa com as meninas da casa enquanto verificava as precárias condições onde vivem. Na lista de coisas que mais precisam, os beliches são a prioridade, já que com o pouco espaço que têm, é a única forma de caberem todas. Roupa e arroz eram os bens seguintes com maior importância.

Sei que na ordem relativa das coisas, pode não ser assim tão relevante, mas confesso que também me marcou muito um cão que andava nas redondezas com um dos ares mais assustados e debilitados que me lembro. Aqui tudo nos aperta o coração.

Ofereceram-me manga crua, que se come com sal. No meio daquele espaço, um fruto doce ter um sabor amargo, certamente lhe deu um sabor melhor.

Ao sair da Casa do Pastor, escorreguei e quase caí na lama. Foi uma risota geral. Confesso que, de certa forma, era justo ter caído.

Ao vir embora, a S. disse-me que a sua irmã casou há dois dias. A irmã da S. tem 16 anos.

[...] Mesmo com o coração apertado, o mundo continua [...]

"Na Rota dos Povos" já estamos a fazer os possíveis para minimizar os problemas das meninas.

À tarde, assisti a um jogo de futebol entre a Academia Desportiva "Na Rota dos Povos" e o Areia FC. Foi um grande jogo, disputado num campo que eu, nem em pé me aguentaria, de tão escorregadio que estava. A “Academia Desportiva” ganhou nos penaltis, tendo a equipa adversária falhado apenas um penalti. Foi uma grande recuperação, já que a Academia esteve a perder por 0-2 ao intervalo, mas conseguiu chegar aos 2-2 no final do tempo regulamentar.

Mas, para mim, a grande vitória foi quando, no final do jogo, vi a equipa e os adeptos da equipa da "Rota" apanhar os sacos de plásticos da água. "Deixámos sempre tudo limpo ", disseram-me.

Durante o jogo tive a hipótese de falar e brincar com algumas crianças. Uma delas foi o Saidú que alinhou nas minhas brincadeiras com boa disposição. Hoje, o Manuel trouxe-me um conjunto de cartas que o Saidú me ofereceu para que eu tivessse “recordação dele”. Para além da “recordação dele”, reforcei a ideia que já tinha, mas que é sempre difícil relembrar que, muitas vezes, quem menos tem, é quem mais partilha.

À noite deixamos de ter água para tomar banho. Temos que a ir buscar ao poço em baldes. Aprendi que não sei tomar banho de bacia. A taça é que traz a água ao corpo e não é o corpo que vai à bacia 🤦

PS: Neste momento cheiro a barra de sabão. E é bem bom ❤️

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